https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjSmwZRDilF1ELCLI5WUHYnElHRWEnoNJBQLGB2usJEIUvDZiLpIhz7BtdHfpXtyr0eZKlb-mG2WtA4vJejg_jG9HhhckWrTkvi3yMKGkpjolZayyy6zxYzhTXzb4SCk5-fkYS03-sBJ_aP/s1600/images.jpg

O ANO NOVO DA COMUNIDADE JUDAICA QUE LUTA PARA EXISTIR



Judeus acendem velas do menorah para início das festividades. Foto: Clayton Rucaly

O desenrolar de toda a reportagem se iniciou nos bastidores dos laboratórios de jornalismo da instituição. Era agosto de 2016 e a professora do curso de tele nos desafiou a buscar algo que nos fizesse sair da zona de conforto, mas que também agregasse algo novo para o telespectador, leitor, enfim, o receptor da mensagem.


A primeira coisa que fiz foi uma rápida pesquisa por algumas palavras chaves no Google e enquanto observava as notícias, vi algo relacionado a Israel. Me lembrei que durante toda minha infância fui um apaixonado por esse país, mas devido a desinformação das pessoas, quase não podia compartilhar nada a respeito. Logo, me vi perguntando como era a situação dos judeus no Estado do Paraná, sabia muito pouco sobre sua presença nesta região, sabia porém, que desde o século XVIII já haviam comunidades na capital e em outras vilas.


Decidi então fazer uma reportagem sobre esse grupo étnico no Paraná. Enquanto pesquisava vi que havia uma pequena comunidade judaica na cidade de Ponta Grossa, que mantinha várias tradições vivas e cultuavam em uma sinagoga construída por eles próprios. Aquilo era um achado, uma comunidade que mantinha as tradições, que não estavam em Curitiba, mas sim em uma região de interior, tradicionalmente marcada pela presença Católico-Protestante. Contatei o rabino da sinagoga e ele me convidou para visitá-los no início de outubro para cobrir a celebração do Ano-Novo judaico.


Assim, tinha um tema pouco explorado e pouco conhecido pelos paranaenses, um fator notícia, o ano novo judaico, mas também um questionamento: como uma pequena comunidade sobrevivia em uma sociedade com valores diferentes, com a queda de natalidade por parte de seus membros e com a mudança do pensamento moderno em relação a religião e aos dogmas.


No dia combinado, me dirigi até Ponta Grossa que fica à 103 quilômetros de Curitiba. A viagem foi curta e eu estava muito ansioso, iria presenciar algo que poucas pessoas se dão o interesse de conhecer, mas eu tinha uma responsabilidade que era de transmitir tudo que eu veria naquele local para essas mesmas pessoas. Cheguei no domingo à tarde e fui direto a sinagoga Anussim Brasil, afinal, era quase 18 horas e as celebrações começam assim que o sol se põe.


Era domingo dois de outubro de 2016. Para nós brasileiros, significava apenas um fim de semana que tinha-se eleição municipal, mas para os judeus de todo o mundo, significava a véspera do ano 5777. O relógio bateu às 18 horas e automaticamente todos se juntaram na pequena sinagoga. Antes de entrarem no templo, os homens passam a mão pelo mezuzá, caixa tubular de madeira com menos de 30 centímetros contendo um pequeno pergaminho com algumas rezas. Já no espaço de adoração cobrem-se com o talit, manto especial usado nas orações. Depois, acendem as velas do candelabro, colocam sobre a mesa os pães e o vinho. A equipe responsável pela comunicação também se posiciona, eles possuem uma grande responsabilidade nas mãos, pois vão transmitir para todos os judeus do interior do Paraná e do Brasil em tempo real a cerimônia.


Em seguida as mulheres se aproximam. É notável que todas são muito recatadas e falam baixo. Conforme a tradição manda, passam a mão pela mezuzá no umbral da porta do templo e entram já com os cabelos cobertos, no entanto percebe-se que algumas não os cobrem, segundo o costume hebraico apenas as casadas devem cobrir sua maior beleza e guardá-los para os maridos. Todas acompanhadas de suas crianças se assentam na parte de trás da sinagoga.
Leitura da Torah, ao fundo as mulheres com as crianças.


A verdade é que mesmo após 3 mil anos de existência, os judeus mantêm tradições iguais aos da época dos tabernáculos, quando ainda viviam governados por juízes e em tendas. O santo dos santos, local onde ficavam os símbolos máximos do judaísmo, na região central ou na frente de tudo, seguido de um lugar específico para os sacerdotes, anciãos e obreiros do templo. Depois o espaço dos homens comuns do povo, as mulheres vinham logo atrás, estando a frente apenas dos estrangeiros, também denominado por eles como Gói. A diferença, no entanto é que agora os Góis (estrangeiros) podem se assentar na frente com os homens caso seja homem ou junto das mulheres caso seja uma.


Essa é uma cena típica de um culto judaico e de fato poderia ser. Poderia ser um culto de sábado em uma sinagoga em São Paulo, Porto Alegre ou mesmo Nova York, mas não. Esse culto tem uma singularidade, está acontecendo fora de uma capital, cosmopolita, Ponta Grossa. Com cerca de 400 mil habitantes, que em sua maioria vivem da agricultura, pecuária e algumas indústrias que tem feito a região crescer vertiginosamente. A comunidade judaica existente ali conta com quase 60 membros que enfrentam alguns grandes desafios, como; uma baixa natalidade, envelhecimento de seus membros e a perda da fé por parte dos jovens. Mas talvez o seu maior inimigo seja a assimilação que por um lado parece ser convidativa, por outra significa o fim de toda sua história.


Essa data tem um significado simbólico para essa comunidade. Shemuel Zakai é um dos pregadores do templo e um dos homens que têm trabalhado para não deixar a cultura judaica na região morrer. O interessante é que ele mora em Curitiba e vai quase todos os fins de semana a Ponta Grossa para ministrar aos membros e celebrar o shabat (sábado, o dia de descanso).


Shemuel Zakai, rabino da sinagoga de Ponta Grossa.
Um homem sereno, esboça poucos sorrisos, mas é extremamente receptivo. Seus olhos carregam muitas histórias, temor a sua fé, mas também revela um certo cansaço, afinal seu trabalho naquela região não deve está sendo tão simples. Me questionei por um breve momento se ele se sente como Moisés do Antigo Testamento. Uma comparação meio arriscada, mas para quem conhece a história, há de se lembrar que Moisés não foi simplesmente o homem que guiou os judeus para fora do Egito. Ele também foi responsável por trazer as leis para a sociedade judaica e um dos homens que contribuiu para a criação da identidade nacional. O trabalho que Shemuel desempenha na cidade de Ponta Grossa, por vezes, tem sua semelhança ao do Libertador Hebreu.


Enquanto eu o observo, o louvor e as preces serenas cessam e dão lugar á uma animada música. Os instrumentistas puxam um ritmo festivo e todos começam a bater palmas e a cantar. Os homens se posicionam em forma de círculo e começam a dançar, pular e trazer as crianças para juntos deles. O clima realmente é alegre e contagiante!


As mulheres também estão comemorando, mas no espaço destinado a elas. Minha mente ocidentalizada não para de se incomodar com aquela cena. Mulheres em uma parte específica do templo, detrás do espaço reservado  aos homens. Logo, lembrei que em minha própria fé, existem costumes que, para um secular são inaceitáveis.


A música foi-se concluindo, os ânimos diminuíram e creio que um dos momentos mais esperados por todos chegou. O momento de comer pão e maçã com mel e beber vinho. Shemuel Zakai é o primeiro, toma uma jarra de bronze que estava sobre a mesa e convida a todos para lavarem as mãos, conforme manda a tradição. Mantenho a atenção em fotografar e filmar esse momento, logo um senhor, Yohan Shaul, se aproxima e convida-me atenciosamente à participar. Ele transparece sabedoria, fala mansamente e é humilde em todos os aspectos e demonstra empatia por todos. De forma carinhosa me explica como é o proceder da lavagem das mãos. Mostra-me que primeiro lava-se a mão direita três vezes, pronunciando uma pequena frase em hebraico, difícil de ser pronunciada por um Gói. Depois, lava-se a mão esquerda, por três vezes também.


Após a lavagem das mãos por todos, cada um pega um pedaço de pão, passam o mel por cima e o comem, o mesmo é feito com a maçã que é mergulhada no mel. Logo após, voltam a dançar ao som de músicas hebraicas. Aproximo-me de Yohan que se mostrava muito feliz de estar ali. Perguntei-o o que significa aquela procissão. Yohan me conta que a maçã e o pão mergulhados no mel querem dizer que estamos desejando um ano doce e bom para as nossas vidas, e aquela difícil frase que disse ao lavar as mãos significava, em português “Que seja Tua vontade, Hashem nosso Deus, que nos inaugure para um ano bom e doce".
Momento em que os judeus comem pão com mel desejando uns aos outros um feliz ano novo.


Após a cerimônia, todos são informados de que a segunda-feira, dia 3, começará com rezas. Todos são convidados para o jantar especial. Nesse momento, não me sinto mais em uma cidade do interior do Paraná ou no Brasil, mas sim em Israel, devido ao ambiente onde aconteceria o jantar. Pois há por todos os lados bandeiras daquele país, uma grande tela passava clipes feitos por judeus ortodoxos, crianças e adultos dançavam todos juntos e as senhoras distribuíam bolos e salgados.


Momento de leitura dos rolos sagrados.
Durante o jantar, tive um tempo para conversar com Yohan e conhecer mais de sua história pessoal. Para minha surpresa, ele contou que era de origem argentina e era um pastor da Igreja Cristã Adventista do Sétimo Dia, onde viajava por todo o país ministrando e realizando seminários. Mas ao longo do tempo, se viu em vários conflitos internos, como por exemplo, a Trindade, comumente aceita pelos cristãos e a unicidade de Deus. Por muitos anos também se questionou sobre o que de fato acreditava. Para conseguir respostas, ele recorreu aos textos originais hebraicos e assim começou a ter novas dimensões da fé. Contudo, o fato do sábado não ser guardado como era de costume dos judeus, o revoltou.


Yohan então, tomou uma difícil decisão, abandonou sua fé, seu título de pastor e converteu-se ao Judaísmo, sem o consentimento da família. Ele conta que todos o questionaram muito, mas em nenhum momento faltaram-lhe com o respeito. Yohan confessa que sente falta dos trabalhos missionários, das viagens e dos congressos. No entanto, nunca esteve tão em paz consigo mesmo como se encontra agora, hoje ele é conselheiro sexual de casais de todas as idades.


A noite continua e continuamos a conversar. Agora estou em um círculo de homens, todos de meia idade. Eles comentam como é difícil ser zeloso às leis judaicas em um ambiente ocidental. Falam que os Góis muitas vezes não os respeitam e debocham de seus valores milenares, confrontam-os e os constrangem de forma covarde.


Um dos homens comenta que hoje prefere dizer que tem alergia a carne derivada de porco, não tendo que enfrentar o interrogatório e por vezes sarcasmos das pessoas. O que ele disse me surpreende, para não sofrer retaliação, ele prefere mentir. Outra coisa que observei ao longo da conversa, foi que apesar de estar ali no meio deles, os homens não se dirigiam à mim, com exceção de Yohan, o qual tivemos grande apreço um pelo outro logo no início também Shemuel, que me recebera em sua casa, os outros quase não se direcionavam para mim e alguns nem mesmo olhavam, como se aquele não fosse o meu lugar.


De certa forma, entendo o motivo pelo qual me tratam de uma maneira fria e suspeita. Todos falam das perseguições, dificuldades de viverem conforme suas tradições, do tratamento que não-judeus dão a eles, mas principalmente como é difícil para terem uma vida em paz. Naquele momento, parecia que todos estavam indiretamente desabafando comigo suas mazelas. Devido a todas as suas experiências ruins e receios, não confiam em mim o bastante para olharem diretamente em meus olhos, ou pelo menos não queriam.


Shemuel me ofereceu um dos quartos da casa onde alguns membros e sua própria família estavam locados. Estando Yohan em uma cama ao lado da minha, perguntei algo que não parava de me incomodar, “Onde estavam os jovens?” Pois na sinagoga havia crianças e adultos. Yohan me conta então, que outrora a comunidade tinha jovens e eles eram ativos e participativos, No entanto com o passar do tempo várias coisas aconteceram para que eles abandonassem a sinagoga e a fé.


Segundo ele, anteriormente houve problemas internos, alguns jovens queriam mudar algumas tradições e isso não aconteceu. Outros desanimaram da fé, não guardavam mais os sábados, casaram-se com góis, tornaram-se cristãos, se assimilando aos costumes locais. Fica claro que essa assimilação, para os judeus que vivem fora de Israel, é o fim de toda cultura judaica..


Yohan me contou a história de um jovem que estava presente nas celebrações, que aqui chamarei de Aliá (termo hebraico para pessoas que voltam a Israel e retornam às origens), por motivo de sigilo ele aconselhou não dizer o nome do jovem. A história de Aliá é que sua mãe era judia-polonesa e durante a Segunda Guerra fugiu com sua família para o Brasil, vindo se esconder no interior do Paraná. No entanto, essa moça se casou com um católico e seu filho não foi ensinado sobre as práticas do judaísmo. Só depois que seu marido morreu, Aliá começou a estudar sobre a história de seus ancestrais, sobre a fé de sua mãe, que não mais praticava. Assim, ambos voltaram a frequentar a sinagoga e agora estavam prestes a se tornarem membros da comunidade. Contudo, esse era apenas um caso dentre outros tantos que fizeram o caminho inverso.


Pela manhã, acordei com todos à mesa durante a primeira refeição, havia pães com geleia, maçã com mel e bolo. Percebi que a matriarca da família de Shemuel estava dirigindo a cozinha com muita atenção, enquanto as visitas eram bem tratadas por todos. Avistei uma mulher na ponta da mesa que estava com os dois filhos pequenos os alimentando e com o marido um pouco mais à esquerda. Essa mulher me chamou a atenção, pois estava com um lenço cobrindo seus cabelos, com roupas modestas que cobriam todas as partes do corpo, até seu pescoço estava coberto. A mulher que eu estava observando era uma educadora e consultora de vendas, Andréa Beltrão. Senti-me à vontade para perguntar sobre papel feminino dentro do mundo judaico.
Na cultura judaica, as mulheres casadas devem cobrir os cabelos e sempre manterem-se discretas, sua principal função é cuidar dos filhos.


Primeira pergunta foi sobre o lenço cobrindo os cabelos, sua resposta foi a necessidade de manter o cabelo belo e chamativo, guardado para o marido. A modéstia é algo muito valorizado pelos mais ortodoxos e Andréa definitivamente era uma. Durante o café, ela me conta, que a tarefa mais importante da mãe é cuidar dos filhos e manter uma família saudável. Enquanto conversávamos, observei que seu marido me olhava um pouco sério. Talvez por estar conversando com sua mulher sem introduzi-lo na conversa. Tratei logo de encerrar as perguntas e voltar a conversar com os homens da mesa.


Às 9 horas da manhã, começam as orações. Por ser uma segunda-feira, são poucos os presentes. Muitos deles estão trabalhando e seus filhos nas escolas; quem comparece de fato, em sua maioria, são os idosos já aposentados que possuem mais tempo para se dedicar à suas vidas religiosas.
Oração e leitura dos trechos da Torah. Ritual seguido pelos judeus durante a passagem do ano novo. 


Conforme eu imaginava, o culto do primeiro dia do ano é sereno e marcado por orações, durante a cerimônia toca-se a Shofar (espécie de berrante) várias vezes. Atrás do púlpito, está um pequeno armário de madeira, onde fica guardado um grande pergaminho com as escrituras sagradas em hebraico. Após o toque do shofar, um dos homens retira o pergaminho, abre-o e começa a recitar uma série de versículos acompanhados de orações hebraicas, todos repetem o que o homem diz, o mesmo acontece várias vezes, até que a cerimônia termina.

Ao fim da cerimônia, todos se cumprimentam, desejam um ótimo ano uns aos outros e começam os preparativos para voltar às suas casas, alguns para suas cidades, mais ao interior e outros como o próprio Shemuel, à Curitiba. Yohan e eu, que agora já criamos um vínculo de amizade, pegamos o contato um do outro e prometemos nos encontrar em breve para um almoço, e claro, para um papo. Da próxima vez que nos encontrarmos não será mais eu como um expectador de uma cultura, mas sim dois amigos conversando sobre fé, costumes e tradições.



← Anterior Proxima  → Página inicial

0 comentários: